domingo, 20 de junho de 2010

O avô do Saramago e a minha avó








No meio de tanta notícia sobre Saramago, como é de se esperar a cada vez que um gênio morre, me deparei com um pedaço da vida dele fabuloso. Velhinho, o avô de Saramago sofreu um derrame e foi levado à Lisboa para se tratar. Sabendo que morreria por lá, o avô, então, despediu-se uma por uma de todas as árvores do seu quintal, abraçando cada figueira e cada oliveira.

Fiquei muito emocionada. E lembrei imediatamente da minha avó. Assim como o avô do escritor, minha avó pressentiu a própria morte, logo após receber o diagnóstico de um câncer em estágio precoce. Era uma sexta-feira do mês de fevereiro (sou incapaz de lembrar a data, mas tenho certeza que era uma sexta). Eu tinha ido levar o meu avô para resolver um pepinão na Prefeitura. Na volta, ainda lembro da carinha dela de surpresa ao abrir a porta pra gente.

_ Voltaram rápido. O almoço tá quase pronto.

Ela vestia uma bermudinha da cor da pele e uma blusa de manga curta combinando. Enquanto eu esperava o almoço ser servido _ macarrão com salsicha_ ela veio com uma caixa cheia de bordados, toalhinhas, panos de prato para me dar. Jamais esquecerei das palavras e do olhar dela.

_ Separei isso tudo pra vc, pra sua casa.

Nessa hora, eu tive a certeza de que ela estava se despedindo de mim. A cirurgia dela estava marcada para a semana seguinte, e eu percebi que minha avó estava se despedindo de coisas importantes para ela: de mim, do bordado, das toalhinhas que ela fez ao longo da vida e que eram tão caras para ela. E pensei em como ela era iluminada, por perceber algo tão apavorante se aproximando e, ainda assim, conseguir se desprender de tudo o que mais ama, aos poucos, sem maiores sofrimentos.

A mim, além do ensinamento, ficou o privilégio de poder ter me despedido dela aos poucos. E de guardar as lembranças tão fortes do nosso último almoço. Comi aquele macarrão e tenho o sabor até hoje no meu paladar. Todos os cheiros daquele dia ainda me acompanham. A nossa conversa ainda está gravada na minha memória. 

Como no filme "A Excêntrica Família de Antônia", e como o avô de Saramago, minha vovó teve o dom de prever a sua partida, se despedir dos seus amores, com a classe e coragem que só os iluminados podem ter.

Vó, onde quer que você esteja, saiba que o teu melhor está comigo. Sempre

Irma (não por acaso, o nome da  minha avó)  

Aqui, reproduzo o texto do Saramago sobre o avô, que agora ele pôde reencontrar:

"A imagem que me não larga é a do velho que caminha sob a chuva, obstinado e silencioso, como quem cumpre um destino que nada pode modificar. A não ser a morte. Mas, nesta altura, este velho, que é meu avô, ainda não sabe como vai morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes do seu último dia vai ter a premonição (perdoa a palavra, Jerónimo) de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, dos frutos que não voltará a comer, das sombras amigas. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória o não fizer ressurgir no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a interrogacão das estrelas. Só isto — e também o gesto que de repente me põe de pé e a urgência da ordem que enche o quarto aquecido onde escrevo."
 

9 comentários:

  1. Fiquei arrepiada com a história dos vovôs. Muito lindo.
    Sonia

    ResponderEliminar
  2. Mari,
    Vc acertou no bolão lá do blog e está em primeiro lugar huuuuhu
    Já abri a segunda rodada, passa lá e deixa seu palpite!
    Bjss
    Dani

    ResponderEliminar
  3. Querida Irma,
    Que texto mais lindo! Também fiquei emocionada. Sempre tive na cabeça que os avós são os pais de bem!
    A simbologia das despedidas fica conosco para sempre!

    e não é que eu acertei o bolão!!!! hahahaha....
    beijocas,

    Mari.

    ResponderEliminar
  4. Poxa!!! Me levou às lágrimas... vc, sua vozinha e o mago das palavras, Saramago.
    Gostei muito desse seu blog, dos seus textos, dessa sua maneira de dizer as coisas.
    Resolvi segui-la e convidá-la para toamr um chocolate comigo. Quem sabe vc também goste de lá e resolva seguir-me.
    Uma semana iluminada.
    Beijos.

    ResponderEliminar
  5. Nossa, não conhecia essa história do avô dele. Muito bom. Fiquei arrepiada.
    Angela

    ResponderEliminar
  6. Nessa história tão doce narrada por Irma, mais bonito do que prever o fim foi tornar especial um rotineiro almoço de família. Acredito que foi muito gostoso ser escolhida/presenteada por alguém tão importante para ser o "guardião" daquilo que ela tanto adorava. A escolha foi coisa de quem ama de verdade. E amor de vó, assim como macarrão com salsicha (adorei o detalhe), é uma delícia.

    ResponderEliminar
  7. Nossa, que linda essa história da sua avó!!
    Iluminada mesmo =D

    beijão,

    Deb

    ResponderEliminar